sábado, 3 de julho de 2010

Sobre referências




Sempre acreditei que as referências ajudam o mundo a entender melhor a vida. O que me espanta é como todo mundo usa referências aleatoriamente. Logicamente, ninguém vai saber exatamente o que o autor do filme, da música ou do texto queria de fato dizer, mas vale ser coerente com as evidências e a interpretação corrente para não se ver em maus lencóis.
Me lembro nitidamente de uma aula em que discuti docemente com o respeitado Claudio Tozzi sobre um Azul de Miró. Não, aquela mancha vermelha não era obrigatoriamente proposital e ninguém ia me convencer disto. Será? Hoje, olho a mancha, e, quem sabe, talvez, aquele vermelho que se dissolve no azul fosse proposital, um sutil aviso sobre a supremacia do azul nas predileções do artista. Supremacia da frieza sobre as latinidades calientes? Inadequação do sentimento latino numa Europa coalhada de nórdicas sensações? Não sei dizer. Falar das artes plásticas é mais subjetivo do que se pode crer.
Conversando com um aprendiz de poeta que me toca a alma com suas gotas cardíacas, de tempos em tempos, ele me esclareceu que pouco importava o que ele queria transmitir, mas o que eu sentia quando lia. Mera provocação? Altruísmo inconsciente? Vaidade da invasão sentimental? Acho que ele deseja quase que utopicamente entrar no meu, no seu universo e te fazer sentir qualquer coisa pra te fazer sair do mesmo. Interpretação minha, of course.
Mas o que falo são daquelas referências clássicas e sempre errôneas ou mal colocadas. "Vivo per lei" é sobre o amor à música e não acho conveniente que ela vire o tema musical do seu amor. "Carruagens de fogo" para a entrada da noiva me parece muito com aleluia-venci-a-maratona, o que também não me parece mensagem a ser transmitida.
A mais clássica referência que me vem à mente é a adorável "I've got you under my skin". Você pode até achar que seu amor é um vício, mas não é nada saudável admitir e jogar na cara que o escolhido (ou escolhida) te faz tão mal quanto a heroína. Sim, o que Cole Porter sentia sob sua pele não era uma mulher, era nada mais, nada menos, que heroína.
A doçura "Something Stupid", regravada recentemente por Robbie Williams e Nicole Kidman chega mais perto do real significado da canção do que a inocente gravação de pai e filha Sinatra. A canção dá a entender que estamos falando, não de uma garota machucada pelo amor que não acredita em frases como eu-te-amo, mas de uma mulher comprometida que não tem tempo para o amante. "Quédizê"...
As referências a pares românticos cinematográficos é de chorar de rir. Pelo simples fato que muitas criaturas não leram o texto, não viram o filme ou não sabem fazer interpretação de nada. Vamos lá...
*Ilsa & Rick de Casablanca. Eles se separam no final, em nome da guerra. Você tá afim mesmo de terminar seus dias com o insosso do Lazlo? Então, mocinha, você não é Ilsa. Ponto.
*Scarlett & Rhett de E o vento levou. Eles também se separam no final, com um Rhett de saco cheio do mimimi O'Hara e Scarlett fazendo a louca no meio de um fog não londrino. Não, você não quer terminar fazendo a louca.
*Romeu & Julieta. Os dois se suicidam. É por isso que é eterno. Você é suicida? Então, tem que ver isso ai.
*Tristão & Isolda. Os dois se casam com outros. Na hora que estão pra se encontrar, são enganados pela esposa traída de Tristão e todo mundo morre de tristeza. Não sou Isolda, que eu tenho mais o que fazer que morrer de tristeza.
*Guinevere & Lancelote. A infeliz é casada com Arthur, os dois a amam, mas na real, eles acabam consumando um amor homossexual. Não tenho estrutura pra isso. Não sou Alice de Viver a Vida. Tente Igraine e Uther. Menos glamour mas acontece o que interessa: amor real.
*Kate & Jack de Lost. Ah, me poupe, ninguém nem entendeu ainda se eles estão vivos ou mortos. Na minha visão, estão mortos. Mas, tipo na realidade 1, eles não conseguiram passar do beijo. Muito platônico.
*Bella & Edward de Crepúsculo. Oi? Eles nunca consumam nada. Bom dia, amada, você acha que seu amor é gay? Ok... me falaram que no fim, rola, mas que a bebê é vampira e suga todo o sangue da mãe. Ah Jesus. Vou acabar sem sangue? Tente ser Sookie e Comptom de True Blood, ao menos. É complicado, mas rola, ok? Eu disse Sookie. Não vá escolher outra personagem você vai acabar sendo rejeitada.
*Pocahontas & John Smith. Ele vai embora, meu bem. E você fica ai, peladinha, abanando a pena dando adeus. Hellooooo!
É. Eu não tenho estrutura pra isso. Prefiro ser algum par menos óbvio e mais feliz. Como Catarina & Petrucchio de A megera domada. Sinhá Vitória e Fabiano de Vidas Secas. Aurélia e Fernando de Senhora. O que eu quero mesmo é ser Sara e Jonathan de Serendipity.
Sim, eu tenho estrutura para finais felizes. Eu tenho estrutura para ser Sookie Stackhouse, Aurélia Camargo, Sara Thomas. Amores tristes ficam bem na ficção, na bossa nova. E até nesta, meu sábio amigo João Gilberto se cansa e canta: Chega de saudade, a realidade é que sem ela não sei viver.
Antes de rotular seu amor com referências estapafúrdias, descubra o que você quer, descubra quem é quem, descubra-se. Leia um pouco! Faz bem pro seu cérebro. E ame! Faz bem pra pele.
Um beijo e um queijo.

* A imagem é do filme Serendipity.

20 comentários:

  1. Genial e amo Serendipity, a vida é isso! Tem que ser real pra ser amor! Chega de chorar, vamos viver! beijo

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  2. Genial seu post!
    Eu sempre desconfiei mesmo que amar só fazia sentido com finais incertos, personagens anônimos e amor com queijo... ah, não esquece da goiabada, pois é o único 'Romeu e Julieta' que vale!

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  3. É Cris...É preciso amaaaar...como se não houvesse amanhã! Lindo texto Flor! Beijos!! Érika

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  4. Hahahaha! Delícia de texto, Cris! Uma colocação bem humorada da mais alta qualidade! E é verdade! Muita gente toma pra si as referências erradas e depois fica chorando sobre o leite derramado! heheheh! Beijos do Land

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  5. maravilhoso o texto, maravilhosa você

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  6. ai ai Cris, você me mata com esses textos. rá

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  7. Amei o texto...
    tão mais prático querer ser William Bonner e Fátima Bernardes, né não? ;o)

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  8. Primeiro eu teria que saber quem é Perséfone...

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  9. Pergunta: Será q o pintor quando está fazendo um quadro tem a exata dimensão do q vai provocar naquele q está olhando sua obra?
    Será q o pingo azul, ou vermelho tem realmente algum propósito? Ou ele simplesmente botou ali porque quis?
    Não pode ser assim?

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  10. Bom dia!
    Ssbe que é isto mesmo? Um pouco de informação, faz bem para o cérebro. pele e te deixa fora de um mal entendido.

    Até mais!
    Anny.

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  11. Muito bom Cris!!! Adorei as referências... Muito bom texto.

    Um beijo!!!

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  12. Hahahahaha... Fantástico! Mas acho válido também considerar opções um pouco mais subjetivas também, como o amor à vida de O Escafandro e A Borboleta; descartar completamente o amor deveras adocicado da "coletânea Meg Ryan"; e assumir que bom mesmo ter uma dama de dia e uma p* de noite, à la "Uma Linda Mulher".

    Exagerei?

    Beijosssss

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  13. Oh muié que escreve bem! Adoro seus textos!
    Bom, comentarinho básico... pras pessoas que rotulam os amores e relações e buscam neles algo de igual aos filmes, livros, músicas e outros, meus sentimentos, pois nada melhor do que fazer sua própria história e viver um grande amor sem comparação. O que interessa mesmo é ser feliz e amar, independente se o amor é docinho ou doido tipo 9 e 1/2 semanas. Não tem problema se vai durar uma vida inteira, 10 anos ou só uma semana. O que importa é viver esse amor intensamente. Que ele seja imortal enquanto dure.
    beijo, amada!

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  14. Menina, Sou sua fã de carteirinha! Viva o amor na real, aquele que rola de verdade, com paixão (e umas quebradas de cara, de vez em quando, que é normal, fazer o que, a vida é assim). Quanto a interpretar a arte, fico com meu amado Mario Quintana, um dos poucos poetas que me tocam e sua "A Coisa" :

    A gente pensa uma coisa, acaba escrevendo outra e o leitor entende uma terceira coisa... e, enquanto se passa tudo isso, a coisa propriamente dita começa a desconfiar que não foi propriamente dita.

    Beijos, linda!

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  15. Oque Miró, músicos, escritores, roteiristas, artistas em geral, e gente comum podem ter em comum? Uma constante luta entre a razão e as paixões (paixão no sentido de impulso sem regras, sem controle - heroína mesmo) - entre o Azul e o vermelho caliente.
    Se considerar o Amor só um sentimento, vai invariavelmente preferir o vermelho ao azul e terminar como qualquer vício ou coisa sem regra termina: com muita dor e decepção.
    Se quiser uma amor racional, será taxada de fria, calculista e, levado às ultimas consequencias, cairá num oportunismo execrável; e o azul vai tomar tons cada vez mais neutros... até tudo ficar em branco e preto - será Miró no fim - traços e pontos.
    Qual o Amor que trás alegria plena, pemanente.. 'Eterno'? Respostas? Equilibrio?
    Não, mas eu achei a resposta... só que isso passa por uma mística(experiência) toda pessoal e não adianta escrever a formula...
    Acho que Shakespeare foi que chegou mais perto na "Megera...": viver, sentir, pensar e agir - seguir a vida. Ela se encarrega da resposta.
    P.S.: É uma delícia ler oque você escreve.

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  16. Ótimo texto.
    Ótimo e divertido, informativo e bastante inteligente.
    Gostei Menina, então, que todo amor seja infinito enquanto dure. E quem seja FELIZ!
    Beijos
    Luci
    ***

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  17. Vou parar e pensar em qual referencia estou me baseando. Mas uma coisa é certa: Estou amando e sendo amada. Bjs

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  18. texto delicioso e verdadeiro.vamos ser felizes!

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  19. Deixe me comentar, porque descobri somente agora: por que não Victor Laszlo? O cara é corajoso, um heroi de guerra, chefe da resistencia. Em um bar repleto de nazistas, ele manda a "Marselhesa" sem medo de nada!!
    Enquanto o cara tava lutando na guerra o Porra do Rick tava em Paris tomando Champagne.... Sorry, o Bogart era do caral...., mas o Victor (amor para a vida toda) era bem melhor do que o Rick (um caso fora do casamento)

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  20. Porque o Lazlo, não era o amor da vida dela... Coração é meio burro. Ela foi embora em nome de todos os ideais, mas o coração ficou ali por Casablanca, mesmo.

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